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[Nada como uma releitura de Ésquilo aí a cada dois ou três anos...]
Nascido em Eleusis em 525 a. C, Ésquilo é, indubitavelmente, o pai da tragédia e um mestre incomparável na manipulação das emoções dos seus personagens e, consequentemente, do seu público.
Combatente nas guerras persas, concretamente na batalha de Maratona, é um ferveroso defensor da cidade de Atenas e da democracia grega - que surgira após a tirania de Pisístrato - e não deixa de expressar isso mesmo ao longo da sua obra (na realidade, sabemos lá nós de que se compunha a sua obra quando os cálculos nos permitem aferir que apenas cerca de 3% do total de peças escritas ao longo do séc. V chegaram até nós!).
Mas conforme vinha a dizer, a obra de Ésquilo é sobretudo um manifesto de exaltação de Atenas e dos valores áticos e é isso que chega a nós neste volume.
AS SUPLICANTES
Infelizmente, As Suplicantes, enquanto primeira e única parte que nos chegou de uma trilogia, faz reduzido sentido quando posta face a face com a restante produção do dramaturgo - especialmente quando estamos perante uma trilogia, felizmente, completa. Ainda assim, o seu domínio da catarse e a apologia da justiça divina fazem valer este trecho muito curioso: uma vez que as 50 Suplicantes eram mulheres cujos papéis eram interpretados por homens, quão fácil seria degenerar a tragédia em comédia?
OS PERSAS
É esta a única peça histórica conhecida de sua lavra, que dá voz aos infortúnios do povo liderado por Xerxes contra os vencedores gregos, e que representou o momento áureo da vitória da democracia sobre a bárbarie. A forma cruel e poética que usa Ésquilo para descrever a tragédia iminente haverá de ter sido o auge do orgulho dos vencedores face aos vencidos:
"(...)vi duas mulheres esplendorosamente vestidas, uma à moda persa, outra à moda dórica, ambas ultrapassando de longe as mulheres de hoje, tanto pelo porte como pela beleza sem mácula. Eram duas irmãs do mesmo sangue; no entanto, uma vivia na Grécia, como o destino lhe ordenara, a outra em terra bárbara. Uma disputa, segundo me pareceu, levantou-se entre elas. O meu filho, apercebendo-se disso, tentou contê-las e acalmá-las, depois atrelou-se ao seu carro e pôs-lhes as corrolas sobre o pescoço. Uma delas curvou-se aos arreios e ofereceu às rédeas a boca dócil, mas a outra escoucinhou e, subitamente, com ambas as mãos, agarrou com força o varal do carro, apesar de estar presa pelas rédeas, e quebrou o jugo em dois. O meu filho caiu e seu pai, Dário, apareceu junto dele e lamentou-o. Xerxes, ao vê-lo, rasgou as vestes que o cobriam. Eis o sonho que tive esta noite. (...) De repente, apercebi-me da existência de uma águia que foi poisar na ara de Phoibos e estaquei, amigos, muda de espanto. Mas logo após, vi um falcão que picava sobre ela de asas abertas e com as garras lhe depenava a cabeça, en quanto a águia se agachava abandonando-se ao seu agressor."
53
OS SETE CONTRA TEBAS
Sófocles não foi o único a pegar no ciclo Tebano para levar à cena uma tragédia imortal. E se ele pega em Édipo e depois em Antígona, Ésquilo usa um momento posterior a Édipo e imediatamente anterior a Antígona para levar à cena a tragédia da sucessão de Tebas.
De forma geral, morta Jocasta, Édipo resigna ao trono. Cabe a Polinices e Etéocles, seus filhos, governar à vez, conforme combinado. Porém, chegada a altura de ceder o trono ao irmão, Etéocles recusa. Polinices resolve então atacar e tomar Tebas para recuperar o trono. Posiciona-se, junto de seis guerreiros, frente a cada uma das sete portas da cidade. Do outro lado, o irmão Etéocles, e seis outros bravos, são quem as defende. Mortos ambos os descendentes de Édipo, considera-se a geração vingada. Ainda assim, como Sófocles belamente canta, o culminar desta maldição virá ainda mais tarde com o sacrifício de Antígona.
PROMETEU AGRILHOADO
Prometeu é o maior dos heróis da humanidade clássica. Filho rebelde, prefere os homens aos deuses e por eles se sacrifica roubando o fogo divino que é a centelha do conhecimento de que todos até hoje usufruímos. Em Ésquilo, prometeu sofre duras penas, amarrado para a eternidade a uma rocha, pois o homem que o irá salvar não é ainda nascido (claro que esse homem apenas poderia ser Hércules, o semideus que concilia o mundo divino com o terrestre).
"PROMETEU - Dizes bem, para os meus amigos sou um espectáculo abominável de se ver.
CORIFEU - E não foste além com os teus propósitos?
PROMETEU-Os mortais devem-me o ter deixado do encarar a morte com terror.
CORIFEU - E que remédio encontrastes para com bater esse terrivel mal?
PROMETEU-Introduzi neles a cega esperança.
CORIFEU - Deste aos mortais um bem precioso.
PROMETEU-Fiz mais ainda: concedi-lhes o fogo.
CORIFEU - E agora o fogo esplêndido está nas mãos de seres efémeros?
PROMETEU - Com ele aprenderão muitas artes.
CORIFEU - E é por essas faltas que Zeus... PROMETEU - Me tortura, sem me aliviar sequer de um dos meus males."
116
E Prometeu é o meu herói por excelência: é o Titã encarregue de criar o homem, e é ele quem salva a humanidade; é quem se rebela contra a prepotência divina e quem consagra aos homens, contra todas as probabilidades, o dom do fogo e, por extensão, da ciência!
"PROMETEU - Usas uma linguagem orgulhosa e arrogante, como convém a um lacaio dos deuses. És novo e como jovem mandas e acreditas viver numa fortaleza inacessível à dor. Já vi cair dois reis e o terceiro, aquele que comanda hoje, não tardará a ver-se ignominiosamente apeado também. Achas que tremo ante os novos deuses e que humilhado me hei-de submeter à sua autoridade? Estou muito longe disso. Volta. portanto, pelo caminho que vieste, pois nada do que pretendes averiguar saberás de mim.
HERMES - Foi por mostrares uma tal obstinação que caíste neste abismo de dores..
PROMETEU - Tem por certo que não trocaria a minha desgraça pela tua servidão."
133
ORESTEIA
E o melhor no fim. A Oresteia, única trilogia que sobreviveu incólume, é a incontornável obra perfeita. Composta pelas peças: Agamémnon, as Coéforas e as Euménides, a trilogia vem "completar" a épica Ilíada contando o desfecho da tragédia dos Atridas.
De forma muito breve (já que imagino que não seja do interesse de ninguém levar com as minhas pseudo palestras de literatura grega), a maldição ("miasma") persegue a casa de Atreu desde o momento em que este oferece ao irmão, num banquete, a carne dos seus filhos a comer (sim, horror!). Pois bem, some-se a isto a profanação dos templos de Tróia levada a cabo por Agamémnon e a imolação em sacrifício aos deuses da sua filha, e fica fácil perceber que esta é uma família bafejada pelo infortúnio. Flashforward / "análepsis", ou o que queiram chamar: Em Argos, Clitemnestra farta de esperar pelo marido que não regressa da guerra arranja-lhe um substituto e com ele planeia matar o marido que assassinou a filha de ambos. Novo flashforward: o filho do rei, irado com o crime da sua morte, resolve vingar o pai matando a mãe assassina. Outro flashforward, quase o último: após matar a mãe, o filho assassino é perseguido pelas Erínias - criaturas sanguinárias que vingam matricídios etc. - até que pede ajuda a Atena. Último flashforward, como prometido: Atena, a deusa virgem, nascida da cabeça de Zeus sem a interferência de uma mulher - conveniente! -, fará o julgamento de Orestes e absolverá, ou não, o jovem do matricídio cometido.
Nada de novo na história, é o mito dos Atridas como sempre foi conhecido - se não contarmos que a apologia de Ésquilo é pela democracia, pelos valores áticos e que a presença de Atena nesta última peça traz toda uma segunda leitura da trilogia: uma leitura profundamente política que, tida no contexto temporal e cultural da sua representação, é das exaltações dos valores democráticos mais claras e belas da antiguidade.
Nascido em Eleusis em 525 a. C, Ésquilo é, indubitavelmente, o pai da tragédia e um mestre incomparável na manipulação das emoções dos seus personagens e, consequentemente, do seu público.
Combatente nas guerras persas, concretamente na batalha de Maratona, é um ferveroso defensor da cidade de Atenas e da democracia grega - que surgira após a tirania de Pisístrato - e não deixa de expressar isso mesmo ao longo da sua obra (na realidade, sabemos lá nós de que se compunha a sua obra quando os cálculos nos permitem aferir que apenas cerca de 3% do total de peças escritas ao longo do séc. V chegaram até nós!).
Mas conforme vinha a dizer, a obra de Ésquilo é sobretudo um manifesto de exaltação de Atenas e dos valores áticos e é isso que chega a nós neste volume.
AS SUPLICANTES
Infelizmente, As Suplicantes, enquanto primeira e única parte que nos chegou de uma trilogia, faz reduzido sentido quando posta face a face com a restante produção do dramaturgo - especialmente quando estamos perante uma trilogia, felizmente, completa. Ainda assim, o seu domínio da catarse e a apologia da justiça divina fazem valer este trecho muito curioso: uma vez que as 50 Suplicantes eram mulheres cujos papéis eram interpretados por homens, quão fácil seria degenerar a tragédia em comédia?
OS PERSAS
É esta a única peça histórica conhecida de sua lavra, que dá voz aos infortúnios do povo liderado por Xerxes contra os vencedores gregos, e que representou o momento áureo da vitória da democracia sobre a bárbarie. A forma cruel e poética que usa Ésquilo para descrever a tragédia iminente haverá de ter sido o auge do orgulho dos vencedores face aos vencidos:
"(...)vi duas mulheres esplendorosamente vestidas, uma à moda persa, outra à moda dórica, ambas ultrapassando de longe as mulheres de hoje, tanto pelo porte como pela beleza sem mácula. Eram duas irmãs do mesmo sangue; no entanto, uma vivia na Grécia, como o destino lhe ordenara, a outra em terra bárbara. Uma disputa, segundo me pareceu, levantou-se entre elas. O meu filho, apercebendo-se disso, tentou contê-las e acalmá-las, depois atrelou-se ao seu carro e pôs-lhes as corrolas sobre o pescoço. Uma delas curvou-se aos arreios e ofereceu às rédeas a boca dócil, mas a outra escoucinhou e, subitamente, com ambas as mãos, agarrou com força o varal do carro, apesar de estar presa pelas rédeas, e quebrou o jugo em dois. O meu filho caiu e seu pai, Dário, apareceu junto dele e lamentou-o. Xerxes, ao vê-lo, rasgou as vestes que o cobriam. Eis o sonho que tive esta noite. (...) De repente, apercebi-me da existência de uma águia que foi poisar na ara de Phoibos e estaquei, amigos, muda de espanto. Mas logo após, vi um falcão que picava sobre ela de asas abertas e com as garras lhe depenava a cabeça, en quanto a águia se agachava abandonando-se ao seu agressor."
53
OS SETE CONTRA TEBAS
Sófocles não foi o único a pegar no ciclo Tebano para levar à cena uma tragédia imortal. E se ele pega em Édipo e depois em Antígona, Ésquilo usa um momento posterior a Édipo e imediatamente anterior a Antígona para levar à cena a tragédia da sucessão de Tebas.
De forma geral, morta Jocasta, Édipo resigna ao trono. Cabe a Polinices e Etéocles, seus filhos, governar à vez, conforme combinado. Porém, chegada a altura de ceder o trono ao irmão, Etéocles recusa. Polinices resolve então atacar e tomar Tebas para recuperar o trono. Posiciona-se, junto de seis guerreiros, frente a cada uma das sete portas da cidade. Do outro lado, o irmão Etéocles, e seis outros bravos, são quem as defende. Mortos ambos os descendentes de Édipo, considera-se a geração vingada. Ainda assim, como Sófocles belamente canta, o culminar desta maldição virá ainda mais tarde com o sacrifício de Antígona.
PROMETEU AGRILHOADO
Prometeu é o maior dos heróis da humanidade clássica. Filho rebelde, prefere os homens aos deuses e por eles se sacrifica roubando o fogo divino que é a centelha do conhecimento de que todos até hoje usufruímos. Em Ésquilo, prometeu sofre duras penas, amarrado para a eternidade a uma rocha, pois o homem que o irá salvar não é ainda nascido (claro que esse homem apenas poderia ser Hércules, o semideus que concilia o mundo divino com o terrestre).
"PROMETEU - Dizes bem, para os meus amigos sou um espectáculo abominável de se ver.
CORIFEU - E não foste além com os teus propósitos?
PROMETEU-Os mortais devem-me o ter deixado do encarar a morte com terror.
CORIFEU - E que remédio encontrastes para com bater esse terrivel mal?
PROMETEU-Introduzi neles a cega esperança.
CORIFEU - Deste aos mortais um bem precioso.
PROMETEU-Fiz mais ainda: concedi-lhes o fogo.
CORIFEU - E agora o fogo esplêndido está nas mãos de seres efémeros?
PROMETEU - Com ele aprenderão muitas artes.
CORIFEU - E é por essas faltas que Zeus... PROMETEU - Me tortura, sem me aliviar sequer de um dos meus males."
116
E Prometeu é o meu herói por excelência: é o Titã encarregue de criar o homem, e é ele quem salva a humanidade; é quem se rebela contra a prepotência divina e quem consagra aos homens, contra todas as probabilidades, o dom do fogo e, por extensão, da ciência!
"PROMETEU - Usas uma linguagem orgulhosa e arrogante, como convém a um lacaio dos deuses. És novo e como jovem mandas e acreditas viver numa fortaleza inacessível à dor. Já vi cair dois reis e o terceiro, aquele que comanda hoje, não tardará a ver-se ignominiosamente apeado também. Achas que tremo ante os novos deuses e que humilhado me hei-de submeter à sua autoridade? Estou muito longe disso. Volta. portanto, pelo caminho que vieste, pois nada do que pretendes averiguar saberás de mim.
HERMES - Foi por mostrares uma tal obstinação que caíste neste abismo de dores..
PROMETEU - Tem por certo que não trocaria a minha desgraça pela tua servidão."
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ORESTEIA
E o melhor no fim. A Oresteia, única trilogia que sobreviveu incólume, é a incontornável obra perfeita. Composta pelas peças: Agamémnon, as Coéforas e as Euménides, a trilogia vem "completar" a épica Ilíada contando o desfecho da tragédia dos Atridas.
De forma muito breve (já que imagino que não seja do interesse de ninguém levar com as minhas pseudo palestras de literatura grega), a maldição ("miasma") persegue a casa de Atreu desde o momento em que este oferece ao irmão, num banquete, a carne dos seus filhos a comer (sim, horror!). Pois bem, some-se a isto a profanação dos templos de Tróia levada a cabo por Agamémnon e a imolação em sacrifício aos deuses da sua filha, e fica fácil perceber que esta é uma família bafejada pelo infortúnio. Flashforward / "análepsis", ou o que queiram chamar: Em Argos, Clitemnestra farta de esperar pelo marido que não regressa da guerra arranja-lhe um substituto e com ele planeia matar o marido que assassinou a filha de ambos. Novo flashforward: o filho do rei, irado com o crime da sua morte, resolve vingar o pai matando a mãe assassina. Outro flashforward, quase o último: após matar a mãe, o filho assassino é perseguido pelas Erínias - criaturas sanguinárias que vingam matricídios etc. - até que pede ajuda a Atena. Último flashforward, como prometido: Atena, a deusa virgem, nascida da cabeça de Zeus sem a interferência de uma mulher - conveniente! -, fará o julgamento de Orestes e absolverá, ou não, o jovem do matricídio cometido.
Nada de novo na história, é o mito dos Atridas como sempre foi conhecido - se não contarmos que a apologia de Ésquilo é pela democracia, pelos valores áticos e que a presença de Atena nesta última peça traz toda uma segunda leitura da trilogia: uma leitura profundamente política que, tida no contexto temporal e cultural da sua representação, é das exaltações dos valores democráticos mais claras e belas da antiguidade.