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Esta review está minada de spoilers. Mas penso que é irrelevante. Além do mito ser conhecido, este género de literatura não vive das surpresas do enredo mas da emoção dada pelas palavras e dos estímulos para pesquisar, aprofundar, aprender, desfrutar... eu, muitas vezes, porque já sei o que vai acontecer, enervo-me e emociono-me mais do que quando leio algo de que desconheço a história.
Medeia é uma das personagens mais fascinantes da mitologia. Inspira repulsa por ter cometido o crime mais nefando (filicídio); mas também admiração pela sua coragem e determinação. E uma compaixão imensa pelo seu sofrimento.
Medeia - por amor a Jasão - trai o pai, deixa a família, o seu país e comete assassínios. Quando ele a abandona, fica destroçada. O ciúme e o despeito desumanizam-na tornando-se tão implacável como os deuses.
Segundo uma profecia, Pélias - rei de Iolcos - seria morto pelo sobrinho, Jasão. Por medo, o rei envia-o - como condição para lhe restituir o trono - na missão impossível de reconquistar o velo de ouro. Jasão constrói a nau Argus e ruma à Cólquida onde, com a ajuda dos feitiços de Medeia, a filha do rei, concretiza a missão. Depois, fogem juntos e, para atrasar os perseguidores, Medeia mata o irmão. De regresso a Iolcos, Medeia convence as filhas de Pélias a matar o próprio pai, cumprindo-se, assim, a profecia. Tiveram de fugir para Corinto, onde Jasão abandona a mulher e os filhos para casar com a filha do rei Creonte.
A peça de Eurípides inicia-se após o noivado de Jasão. Medeia, enlouquecida de dor pela traição, recebe ordens do rei para, com os filhos, sair de Corinto. Então, decide matar a noiva e os próprios filhos. A noiva, claramente, é assassinada por vingança. Em relação aos filhos os motivos serão vários:
- orgulho e justiça: "É que não se pode tolerar que os inimigos escarneçam de nós, ó amigas."
- paixão: "Compreendo bem o crime que vou perpetrar, mas, mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais."
- Proteção: "Matar os filhos o mais depressa que puder e evadir-me desta terra, não vá acontecer que, ficando eu ociosa, abandone as crianças, para serem mortas com mão mais hostil."
- vingança: "Nada morderá mais rijo no coração de meu marido."
O último motivo terá sido vão. Jasão, além de hipócrita (sacrificou-se casando com a filha de Creonte para poder dar uma vida melhor aos filhos e a Medeia: "fui sensato, fui esperto, fui um grande amigo, para ti e para os meus filhos." Mas, "vós, mulheres, se surge algum contratempo no matrimónio, das melhores e mais belas relações fazeis as mais hostis.") é o arquétipo do egoísta. Quando Jasão sabe da morte dos filhos queixa-se, na mesma frase, da noite de núpcias que perdeu e de não ter podido despedir-se dos filhos. "cabe-me em sorte lamentar-me, a mim, que nem gozarei do novo leito nupcial, nem me é dado dizer adeus ainda em vida aos filhos que gerei e criei."
As últimas falas da peça deixam claro quem mais ama as crianças: aquela que as matou infligindo a si mesma "duas vezes o mesmo mal."
"JASÃO — Ó filhos tão queridos!...
MEDEIA — À mãe, não a ti."
Existem várias versões da tragédia de Medeia. A de Euripídes é a única em que ela mata os filhos.
Em relação ao argonauta talvez outro leitor faça uma interpretação mais generosa do que eu. Mas não creio...
"Desgraçada, eras de pedra
ou de ferro, tu que os filhos,
esses frutos que geraras,
com a própria mão mataste!"
"ela é terrível, e quem a desafia como inimiga não alcançará facilmente vitória."
(Eugène Delacroix - Medea about to Kill her Children)
Medeia é uma das personagens mais fascinantes da mitologia. Inspira repulsa por ter cometido o crime mais nefando (filicídio); mas também admiração pela sua coragem e determinação. E uma compaixão imensa pelo seu sofrimento.
Medeia - por amor a Jasão - trai o pai, deixa a família, o seu país e comete assassínios. Quando ele a abandona, fica destroçada. O ciúme e o despeito desumanizam-na tornando-se tão implacável como os deuses.
Segundo uma profecia, Pélias - rei de Iolcos - seria morto pelo sobrinho, Jasão. Por medo, o rei envia-o - como condição para lhe restituir o trono - na missão impossível de reconquistar o velo de ouro. Jasão constrói a nau Argus e ruma à Cólquida onde, com a ajuda dos feitiços de Medeia, a filha do rei, concretiza a missão. Depois, fogem juntos e, para atrasar os perseguidores, Medeia mata o irmão. De regresso a Iolcos, Medeia convence as filhas de Pélias a matar o próprio pai, cumprindo-se, assim, a profecia. Tiveram de fugir para Corinto, onde Jasão abandona a mulher e os filhos para casar com a filha do rei Creonte.
A peça de Eurípides inicia-se após o noivado de Jasão. Medeia, enlouquecida de dor pela traição, recebe ordens do rei para, com os filhos, sair de Corinto. Então, decide matar a noiva e os próprios filhos. A noiva, claramente, é assassinada por vingança. Em relação aos filhos os motivos serão vários:
- orgulho e justiça: "É que não se pode tolerar que os inimigos escarneçam de nós, ó amigas."
- paixão: "Compreendo bem o crime que vou perpetrar, mas, mais potente do que as minhas deliberações, é a paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais."
- Proteção: "Matar os filhos o mais depressa que puder e evadir-me desta terra, não vá acontecer que, ficando eu ociosa, abandone as crianças, para serem mortas com mão mais hostil."
- vingança: "Nada morderá mais rijo no coração de meu marido."
O último motivo terá sido vão. Jasão, além de hipócrita (sacrificou-se casando com a filha de Creonte para poder dar uma vida melhor aos filhos e a Medeia: "fui sensato, fui esperto, fui um grande amigo, para ti e para os meus filhos." Mas, "vós, mulheres, se surge algum contratempo no matrimónio, das melhores e mais belas relações fazeis as mais hostis.") é o arquétipo do egoísta. Quando Jasão sabe da morte dos filhos queixa-se, na mesma frase, da noite de núpcias que perdeu e de não ter podido despedir-se dos filhos. "cabe-me em sorte lamentar-me, a mim, que nem gozarei do novo leito nupcial, nem me é dado dizer adeus ainda em vida aos filhos que gerei e criei."
As últimas falas da peça deixam claro quem mais ama as crianças: aquela que as matou infligindo a si mesma "duas vezes o mesmo mal."
"JASÃO — Ó filhos tão queridos!...
MEDEIA — À mãe, não a ti."
Existem várias versões da tragédia de Medeia. A de Euripídes é a única em que ela mata os filhos.
Em relação ao argonauta talvez outro leitor faça uma interpretação mais generosa do que eu. Mas não creio...
"Desgraçada, eras de pedra
ou de ferro, tu que os filhos,
esses frutos que geraras,
com a própria mão mataste!"
"ela é terrível, e quem a desafia como inimiga não alcançará facilmente vitória."
(Eugène Delacroix - Medea about to Kill her Children)