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"Talvez seja verdade que tudo pode mudar num dia. Que umas escassas dúzias de horas podem afectar o curso de toda uma vida. E que, quando assim acontece, essas poucas dúzias de horas, como os despojos de uma casa queimada, o relógio carbonizado, a fotografia chamuscada, a mobília ardida, têm de ser ressuscitadas das ruínas e examinadas. Conservadas. Explicadas.
Pequenos acontecimentos, coisas vulgares, destruídas e reconstituídas. Investidas de novo significado. Subitamente tornam-se nos ossos descorados de uma história."
O Deus das Pequenas Coisas tem tanto de belo quanto de perturbador. Mas talvez perturbador não seja a palavra certa e essa seja injusto, ou perverso, ou só humano.
Todas as narrativas que abordam as diferenças de género (e já agora as de classe também, como aqui) tendem a ser duras e a espelhar a sordidez em que assentam as sociedades humanas - mas a beleza deste livro, de cujo narrador/a, muito jovem, transparece um discurso inocente, com uma cadência ao estilo da fábula, eleva a dureza das ações retratadas a outro nível.
Para Estha e Rahel, a vida, estratificada, compartimentada, regrada é uma realidade de onde se escapam apenas através da rebelião da imaginação (e um ou outro passinho mais ousado que se permite às crianças). Até que, num único dia, todas as barreiras conhecidas se estilhaçam, bocadinho a bocadinho, num crescendo de iniquidade e malvadeza.
No fundo da sua história jaz o desejo de amar e ser amado; todos os personagens dentro da narrativa ambicionam, de uma ou de outra forma, amor: amor de mãe, de filho, de amante, de camarada... Amores proibidos numa sociedade em que a hereditariedade de castas dita quem deve ser amado e de que forma. Tudo correrá bem desde que ninguém ouse espreitar para lá da cerca, cobiçar o que lhe é proibido.
Infelizmente, é exatamente isso que acontece, aos gémeos e a sua mãe, nesta história: ousam amar um Intocável - a designação diz tudo, dentro de um sistema de classes, os Intocáveis não são homens, não são mulheres, não são ninguém, não são nada.
"Mammachi contou a Estha e a Rahel que, na sua meninice, os Paravás se retiravam rastejando às arrecuas com uma vassoura, varrendo as suas pegadas de modo a que nenhum brâmane ou cristão sírio se conspurcasse ao pisar acidentalmente uma pegada de Paravi. No tempo de Mammachi, os Paravás, como os demais Intocáveis, estavam proibidos de circular nas estradas públicas, proibidos de cobrir a parte superior do corpo, proibidos de usar guarda-chuva. Tinham de tapar a boca com as mãos quando falavam, afastando o seu hálito poluído daqueles daqueles a quem se dirigiam."
Por isso, amar (O Deus das) Pequenas Coisas, com todas as forças do ser, terá um preço muito alto para esta família.
"O homem à sombra das árvores de borracha com moedas de sol dançando-lhe no corpo, segurando a sua filha nos braços, ergueu os olhos e encontrou o olhar de Ammu. Séculos confluíram num momento evanescente. A história não estava em sentido e foi apanhada desprevenida."
A história podia até estar desprevenida, mas quando vier reclamar o seu preço, as consequências serão devastadoras:
"Os gémeos eram demasiado novos para saberem que [os polícias] eram apenas os escudeiros da História. Enviados para acertarem as contas e cobrarem as multas daqueles que não cumpriam as leis. Impelidos por sentimentos primordiais e, paradoxalmente, totalmente impessoais. Sentimentos de despeito nascidos de um medo incipiente e inconsciente - o medo que a civilização tem da natureza, os homens das mulheres, o poder da impotência.
O impulso subliminal do homem para destruir tudo aquilo que não consegue subjugar ou deificar.
Necessidades de Homens. Aquilo que Esthappen e Rahel testemunharam naquela manhã, embora ainda não o soubessem, foi uma demonstração clínica em condições controladas (afinal de contas, não era uma guerra ou um genocídio) da ânsia humana de poder. Estrutura. Ordem. Monopólio total. Era a história humana, mascarada de Desígnio Divino, revelando -se a um público menor de Idade."
O Deus das Pequenas Coisas é por isso uma narrativa de pequenos nadas, pequeninos pedaços de quotidiano, pequeninos receios, pequeninas observações, pequeninas alegrias, pequeninas aventuras. O foco central são os gémeos biovulares, Estha e Rahel, mas o seu tema é muito abrangente - assente na visão despojada destas duas crianças, traça a história de uma Índia dividida cultural e politicamente - um país de desigualdades, uma cultura que não respeita os estratos mais baixos nem as mulheres; onde as fronteiras e as interdições são muito claras e ultrapassar os limites definidos tem consequências que não se podem prever.
O seu ritmo, longe de ser frenético, envolve o leitor numa narrativa suave, inocente, previsível (no sentido em que não lhe oculta que as dificuldades irão surgir); com repetidas referências (muitas vezes reveladas na escrita do/a narrador/a) à descoberta do mundo e à aprendizagem, ao despertar do medo, da consciência da finitude da vida, e das consequências da quebra das regras estabelecidas.
O Deus das Pequenas Coisas é um livro fruto da maturidade emocional, brutal e brilhante, onde se revela um domínio de escrita indiscutível, e onde a capacidade de criar ambientes é irrepreensível. Exige concentração e tempo por parte do leitor, é verdade, mas devolve uma experiência única e necessária. Atua como uma espécie de manifesto, ou, vá, como uma denúncia da perversidade dos homens para com os homens, e, sobretudo, da hereditariedade dessa perversidade.
Um livro espantoso.
"(...)o segredo das Grandes Histórias é elas não terem segredo nenhum. As Grandes Histórias são aquelas que já ouvimos e queremos voltar a ouvir. Aquelas onde podemos entrar e morar confortavelmente. Que não nos enganam com calafrios e finais acrobáticos. Que não nos surpreendem com o imprevisto. Que são tão familiares como a casa unde moramos. Ou o cheiro da pele de um amante. Sabemos como acabam, porém ouvimo-las como se não soubéssemos. Tal como, embora sabendo que um dia havemos de morrer, vivemos como se não o soubéssemos. Nas Grandes Histórias sabemos quem vive, quem morre, quem encontra o amor e quem são encontra. E, contudo, queremos saber de novo.
É esse o seu mistério e a sua magia."
Pequenos acontecimentos, coisas vulgares, destruídas e reconstituídas. Investidas de novo significado. Subitamente tornam-se nos ossos descorados de uma história."
O Deus das Pequenas Coisas tem tanto de belo quanto de perturbador. Mas talvez perturbador não seja a palavra certa e essa seja injusto, ou perverso, ou só humano.
Todas as narrativas que abordam as diferenças de género (e já agora as de classe também, como aqui) tendem a ser duras e a espelhar a sordidez em que assentam as sociedades humanas - mas a beleza deste livro, de cujo narrador/a, muito jovem, transparece um discurso inocente, com uma cadência ao estilo da fábula, eleva a dureza das ações retratadas a outro nível.
Para Estha e Rahel, a vida, estratificada, compartimentada, regrada é uma realidade de onde se escapam apenas através da rebelião da imaginação (e um ou outro passinho mais ousado que se permite às crianças). Até que, num único dia, todas as barreiras conhecidas se estilhaçam, bocadinho a bocadinho, num crescendo de iniquidade e malvadeza.
No fundo da sua história jaz o desejo de amar e ser amado; todos os personagens dentro da narrativa ambicionam, de uma ou de outra forma, amor: amor de mãe, de filho, de amante, de camarada... Amores proibidos numa sociedade em que a hereditariedade de castas dita quem deve ser amado e de que forma. Tudo correrá bem desde que ninguém ouse espreitar para lá da cerca, cobiçar o que lhe é proibido.
Infelizmente, é exatamente isso que acontece, aos gémeos e a sua mãe, nesta história: ousam amar um Intocável - a designação diz tudo, dentro de um sistema de classes, os Intocáveis não são homens, não são mulheres, não são ninguém, não são nada.
"Mammachi contou a Estha e a Rahel que, na sua meninice, os Paravás se retiravam rastejando às arrecuas com uma vassoura, varrendo as suas pegadas de modo a que nenhum brâmane ou cristão sírio se conspurcasse ao pisar acidentalmente uma pegada de Paravi. No tempo de Mammachi, os Paravás, como os demais Intocáveis, estavam proibidos de circular nas estradas públicas, proibidos de cobrir a parte superior do corpo, proibidos de usar guarda-chuva. Tinham de tapar a boca com as mãos quando falavam, afastando o seu hálito poluído daqueles daqueles a quem se dirigiam."
Por isso, amar (O Deus das) Pequenas Coisas, com todas as forças do ser, terá um preço muito alto para esta família.
"O homem à sombra das árvores de borracha com moedas de sol dançando-lhe no corpo, segurando a sua filha nos braços, ergueu os olhos e encontrou o olhar de Ammu. Séculos confluíram num momento evanescente. A história não estava em sentido e foi apanhada desprevenida."
A história podia até estar desprevenida, mas quando vier reclamar o seu preço, as consequências serão devastadoras:
"Os gémeos eram demasiado novos para saberem que [os polícias] eram apenas os escudeiros da História. Enviados para acertarem as contas e cobrarem as multas daqueles que não cumpriam as leis. Impelidos por sentimentos primordiais e, paradoxalmente, totalmente impessoais. Sentimentos de despeito nascidos de um medo incipiente e inconsciente - o medo que a civilização tem da natureza, os homens das mulheres, o poder da impotência.
O impulso subliminal do homem para destruir tudo aquilo que não consegue subjugar ou deificar.
Necessidades de Homens. Aquilo que Esthappen e Rahel testemunharam naquela manhã, embora ainda não o soubessem, foi uma demonstração clínica em condições controladas (afinal de contas, não era uma guerra ou um genocídio) da ânsia humana de poder. Estrutura. Ordem. Monopólio total. Era a história humana, mascarada de Desígnio Divino, revelando -se a um público menor de Idade."
O Deus das Pequenas Coisas é por isso uma narrativa de pequenos nadas, pequeninos pedaços de quotidiano, pequeninos receios, pequeninas observações, pequeninas alegrias, pequeninas aventuras. O foco central são os gémeos biovulares, Estha e Rahel, mas o seu tema é muito abrangente - assente na visão despojada destas duas crianças, traça a história de uma Índia dividida cultural e politicamente - um país de desigualdades, uma cultura que não respeita os estratos mais baixos nem as mulheres; onde as fronteiras e as interdições são muito claras e ultrapassar os limites definidos tem consequências que não se podem prever.
O seu ritmo, longe de ser frenético, envolve o leitor numa narrativa suave, inocente, previsível (no sentido em que não lhe oculta que as dificuldades irão surgir); com repetidas referências (muitas vezes reveladas na escrita do/a narrador/a) à descoberta do mundo e à aprendizagem, ao despertar do medo, da consciência da finitude da vida, e das consequências da quebra das regras estabelecidas.
O Deus das Pequenas Coisas é um livro fruto da maturidade emocional, brutal e brilhante, onde se revela um domínio de escrita indiscutível, e onde a capacidade de criar ambientes é irrepreensível. Exige concentração e tempo por parte do leitor, é verdade, mas devolve uma experiência única e necessária. Atua como uma espécie de manifesto, ou, vá, como uma denúncia da perversidade dos homens para com os homens, e, sobretudo, da hereditariedade dessa perversidade.
Um livro espantoso.
"(...)o segredo das Grandes Histórias é elas não terem segredo nenhum. As Grandes Histórias são aquelas que já ouvimos e queremos voltar a ouvir. Aquelas onde podemos entrar e morar confortavelmente. Que não nos enganam com calafrios e finais acrobáticos. Que não nos surpreendem com o imprevisto. Que são tão familiares como a casa unde moramos. Ou o cheiro da pele de um amante. Sabemos como acabam, porém ouvimo-las como se não soubéssemos. Tal como, embora sabendo que um dia havemos de morrer, vivemos como se não o soubéssemos. Nas Grandes Histórias sabemos quem vive, quem morre, quem encontra o amor e quem são encontra. E, contudo, queremos saber de novo.
É esse o seu mistério e a sua magia."