...
Show More
Começar por referir dois elementos centrais desta leitura: a) considero Nabokov um dos escritores mais relevantes de sempre em termos estéticos, a par com Proust; b) por três vezes quis fechar o livro e desistir, a tal desespero me levou o autor nesta leitura. Se b) não aconteceu, foi apenas porque existia a).
“Fogo Pálido”, como muitas análises vos dirão é um objecto único, embora o tenha sido mais em 1962 do que é hoje. A obra apresenta-se como uma espécie de introdução ao pós-modernismo literário, e desde então muitas outras lhe seguiram as pisadas. Com o modernismo tivemos o fluxo de consciência com os seus efeitos discursivos sustentados por razões dos diferentes modos de pensar, com o pós-modernismo tivemos a total deslinearização e fragmentação discursiva sem razões ou explicações, atirando os leitores borda fora, sem bóias de socorro ou sinais de guia.
Inevitável para quem lê hoje “Fogo Pálido” não pensar em “Se Numa Noite de Inverno Um Viajante” de Calvino, assim como não pensar na série de aventuras “Choose Your Own Adventure”, e por sua vez em toda a discussão em redor do hipertexto, narrativas interativas, participação dos leitores, etc.
Nabokov constrói um livro no qual apesar de contar uma história, não o faz seguindo a convencional estrutura narrativa, mas antes um modo muito pouco dado ao formato de contar histórias, o jogo. A base de “Fogo Pálido” é uma estrutura de jogo, e a leitura passa por jogar com os elementos que vão sendo apresentados à medida que vamos avançando. O livro constitui-se numa lógica de perguntas, com respostas espalhadas ao longo de toda a sua extensão, desde o Índice ao Índex (todos os elementos são relevantes), cabendo ao leitor encontrar as repostas, para as quais terá de jogar com as diferentes peças - objectos, acções, personagens - na reconstrução do todo.
Assumindo a lógica de jogo como central e fugindo sempre que possível da narrativa, a obra acaba operando numa base de grande racionalidade, deixando pouco espaço à emocionalidade, que fica mais reservada para o final da obra quando as peças se vão re-organizando e começamos a vislumbrar partes do todo. Deste modo o livro requer uma abordagem laboriosa, com estudo e dedicação, impossibilitando ou tornando difícil a normal leitura corrida. Desta forma compreende-se que a crítica não tenha reagido muito bem ao livro quando saiu, e só mais tarde, quando alguns críticos e académicos realizaram as primeiras releituras se começou a perceber a diferente e inovadora estrutura trazida por Nabokov à literatura.
Dito tudo isto, gostei do trabalho, reconheço a experimentação e inovação, mas não fui particularmente surpreendido emocionalmente, tendo sentido um certo afastamento da obra ao longo de toda a sua leitura. Talvez precise de realizar uma releitura, ou simplesmente o facto de estarmos em 2015, e muitas obras depois desta terem explorado a mesma abordagem, simplesmente me sinta cansado do experimentalismo que acabou por trazer muito pouco de novo à literatura. Muito se fez em busca de novos modos de contar histórias, mas continuamos dependentes da estrutura narrativa, muito provavelmente porque essa não foi um modelo criado pelos escritores, mas antes se reporta ao modelo cognitivo por meio do qual fazemos sentido da realidade que nos circunda.
Nota: Para quem desejar estudar em profundidade o livro, recomendo vivamente o livro "Nabokov's "Pale Fire": The Magic of Artistic Discovery" (1999) de Brian Boyd, um dos maiores especialistas em estudos de narrativa, assim como em Nabokov.
“Fogo Pálido”, como muitas análises vos dirão é um objecto único, embora o tenha sido mais em 1962 do que é hoje. A obra apresenta-se como uma espécie de introdução ao pós-modernismo literário, e desde então muitas outras lhe seguiram as pisadas. Com o modernismo tivemos o fluxo de consciência com os seus efeitos discursivos sustentados por razões dos diferentes modos de pensar, com o pós-modernismo tivemos a total deslinearização e fragmentação discursiva sem razões ou explicações, atirando os leitores borda fora, sem bóias de socorro ou sinais de guia.
Inevitável para quem lê hoje “Fogo Pálido” não pensar em “Se Numa Noite de Inverno Um Viajante” de Calvino, assim como não pensar na série de aventuras “Choose Your Own Adventure”, e por sua vez em toda a discussão em redor do hipertexto, narrativas interativas, participação dos leitores, etc.
Nabokov constrói um livro no qual apesar de contar uma história, não o faz seguindo a convencional estrutura narrativa, mas antes um modo muito pouco dado ao formato de contar histórias, o jogo. A base de “Fogo Pálido” é uma estrutura de jogo, e a leitura passa por jogar com os elementos que vão sendo apresentados à medida que vamos avançando. O livro constitui-se numa lógica de perguntas, com respostas espalhadas ao longo de toda a sua extensão, desde o Índice ao Índex (todos os elementos são relevantes), cabendo ao leitor encontrar as repostas, para as quais terá de jogar com as diferentes peças - objectos, acções, personagens - na reconstrução do todo.
Assumindo a lógica de jogo como central e fugindo sempre que possível da narrativa, a obra acaba operando numa base de grande racionalidade, deixando pouco espaço à emocionalidade, que fica mais reservada para o final da obra quando as peças se vão re-organizando e começamos a vislumbrar partes do todo. Deste modo o livro requer uma abordagem laboriosa, com estudo e dedicação, impossibilitando ou tornando difícil a normal leitura corrida. Desta forma compreende-se que a crítica não tenha reagido muito bem ao livro quando saiu, e só mais tarde, quando alguns críticos e académicos realizaram as primeiras releituras se começou a perceber a diferente e inovadora estrutura trazida por Nabokov à literatura.
Dito tudo isto, gostei do trabalho, reconheço a experimentação e inovação, mas não fui particularmente surpreendido emocionalmente, tendo sentido um certo afastamento da obra ao longo de toda a sua leitura. Talvez precise de realizar uma releitura, ou simplesmente o facto de estarmos em 2015, e muitas obras depois desta terem explorado a mesma abordagem, simplesmente me sinta cansado do experimentalismo que acabou por trazer muito pouco de novo à literatura. Muito se fez em busca de novos modos de contar histórias, mas continuamos dependentes da estrutura narrativa, muito provavelmente porque essa não foi um modelo criado pelos escritores, mas antes se reporta ao modelo cognitivo por meio do qual fazemos sentido da realidade que nos circunda.
Nota: Para quem desejar estudar em profundidade o livro, recomendo vivamente o livro "Nabokov's "Pale Fire": The Magic of Artistic Discovery" (1999) de Brian Boyd, um dos maiores especialistas em estudos de narrativa, assim como em Nabokov.