...
Show More
"O passado pulsa dentro de mim como um segundo coração."
Acho curioso que Banville opte por entrelaçar a trama deste seu O Mar em torno da arte e de Bonnard, pois é à luz da sua obra que leio este livro.
E é às águas de Bonnard, às cristalizações dos momentos que o artista escolhe retratar, que Max, recentemente viúvo, se recolhe, e a partir das quais tece o seu próprio retrato de memórias.
"A verdade é que as coisas vão resistindo ao passo que tudo o que é vivo desaparece."
E cruzando passados e presentes, reflete a vida, a morte, e a crueldade indiscriminada do destino.
"Aquilo não devia ter-lhe acontecido. Não devia ter-nos acontecido, nós não éramos esse género de pessoas. Os infortúnios, as doenças, a morte prematura, são tudo coisas que acontecem a gente boa, aos humildes, ao sal da terra, e não a Anna, não a mim. No meio do cortejo imperial que era a nossa vida em comum, um vadio inútil e trocista avançou dentre a multidão que nos aplaudia e, esboçando a paródia de uma vénia, entregou à minha trágica rainha a sentença de condenação."
Aquilo que Banville oferece não é um livro, é um pós-impressionista de pleno direito (não quis ir ver se o autor tem alguma ligação às artes plásticas ou à história da arte antes desta review, para não viciar a minha opinião, mas fá-lo-ei em seguida): um experiência com cores, formas e luz que no, final, resulta numa imagem algo difusa, meio etérea e inteiramente subjetiva do objeto que, tal como a musa de Bonnard, inspira e obceca o narrador.
"Os personagens do passado distante acabam sempre por vir ter connosco, para exigirem o que lhes é devido."
Apesar de o seu objetivo maior ser o de fixar a imagem da mulher amada e perdida, Max não resiste a reconfigurar o espectro da sua vida à luz do papel que essa mulher representa nela. Agarradas, se assim se pode dizer, à imagem de Anna, surgem as sombras de outras figuras femininas: Connie, Chloe, Rose, Claire que obrigam o narrador a saltos temporais que trazem com eles cenários, momentos, situações, pessoas que, no seu conjunto, compõem a figura do narrador.
"Estou a vê-los, aos meus pobres pais, movimentando-se rancorosamente dentro de casa, na infância do mundo. A infelicidade deles foi uma das constantes dos meus primeiros anos de vida, uma espécie de zumbido agudo e incessante mas inaudível. Não os odiava. Provavelmente, amava-os. Só que me obstruíam o caminho, obscurecendo a minha visão do futuro. Com o passar do tempo consegui ver através deles, através dos meus pais transparentes."
Mas a memória de Max não é fiável, e ele sabe disso. Como as vagas do mar, ela avança e recua apenas a seu prazer, e ele vai vogando sem controlo por esse mar adentro, acabado extenuado, à margem, arrastado pela força da rebentação.
"Há momentos em que o passado possui uma força tão grande que temos a sensação de que nos pode aniquilar."
Como narrador desta história, Max é absolutamente impotente perante os desígnios do destino, perante os caprichos da mente. Como o leitor, é um joguete nas mãos dos deuses.
"...em que momento, dentre todos os momentos, é que a vida não muda por completo até à derradeira e mais crucial de todas as mudanças?"
Porque se apercebe disso, a narrativa avança em direção à forma primitiva da existência, à conclusão que define a vida - Max, ao contrário de Bonnard, está destinado a terminar, não possui o "anátema da perpetuação" dos artistas e sabe que, quando encerrar a sua narrativa, isso será um fim em si mesmo. Anna não permanecerá se ele não a conseguir montar, como uma peça, no imenso puzzle da sua vida. E então, nada mais restará.
"(...)o que eu antevia para o futuro era de facto uma imagem que não passava de um passado imaginado. Poder-se-á dizer que mais do que antecipar o futuro me sentia nostálgico desse mesmo futuro, pois o que ia acontecer na minha fantasia na realidade já tinha desaparecido. E, inesperadamente, isso impressiona-me por ser de certo modo significativo. O que eu procurava era realmente o futuro ou algo para além dele?"
O Mar é um livro triste, sentimental, poético, claro, polido na sua forma e dotado de um estilo cristalino. A aproximação ao pós-impressionismo obriga à amputação do enredo: o subjetivo prevalece propositadamente, mas essa opção funciona muito bem, demasiado bem para admitir que é acidental. A ligação entre a pintura e a literatura não é só óbvia, é completa: da rapidez, à vivacidade, à expressão dos sentimentos. No final deve prevalecer a sensação provocada pelo todo em detrimento da análise do elemento técnico - só por essa razão não me alongo e alongo mais... Não é preciso.
"Afinal não passamos de pequenos botes de tristeza a vogar num silêncio lânguido por entre as trevas outonais."
Acho curioso que Banville opte por entrelaçar a trama deste seu O Mar em torno da arte e de Bonnard, pois é à luz da sua obra que leio este livro.
E é às águas de Bonnard, às cristalizações dos momentos que o artista escolhe retratar, que Max, recentemente viúvo, se recolhe, e a partir das quais tece o seu próprio retrato de memórias.
"A verdade é que as coisas vão resistindo ao passo que tudo o que é vivo desaparece."
E cruzando passados e presentes, reflete a vida, a morte, e a crueldade indiscriminada do destino.
"Aquilo não devia ter-lhe acontecido. Não devia ter-nos acontecido, nós não éramos esse género de pessoas. Os infortúnios, as doenças, a morte prematura, são tudo coisas que acontecem a gente boa, aos humildes, ao sal da terra, e não a Anna, não a mim. No meio do cortejo imperial que era a nossa vida em comum, um vadio inútil e trocista avançou dentre a multidão que nos aplaudia e, esboçando a paródia de uma vénia, entregou à minha trágica rainha a sentença de condenação."
Aquilo que Banville oferece não é um livro, é um pós-impressionista de pleno direito (não quis ir ver se o autor tem alguma ligação às artes plásticas ou à história da arte antes desta review, para não viciar a minha opinião, mas fá-lo-ei em seguida): um experiência com cores, formas e luz que no, final, resulta numa imagem algo difusa, meio etérea e inteiramente subjetiva do objeto que, tal como a musa de Bonnard, inspira e obceca o narrador.
"Os personagens do passado distante acabam sempre por vir ter connosco, para exigirem o que lhes é devido."
Apesar de o seu objetivo maior ser o de fixar a imagem da mulher amada e perdida, Max não resiste a reconfigurar o espectro da sua vida à luz do papel que essa mulher representa nela. Agarradas, se assim se pode dizer, à imagem de Anna, surgem as sombras de outras figuras femininas: Connie, Chloe, Rose, Claire que obrigam o narrador a saltos temporais que trazem com eles cenários, momentos, situações, pessoas que, no seu conjunto, compõem a figura do narrador.
"Estou a vê-los, aos meus pobres pais, movimentando-se rancorosamente dentro de casa, na infância do mundo. A infelicidade deles foi uma das constantes dos meus primeiros anos de vida, uma espécie de zumbido agudo e incessante mas inaudível. Não os odiava. Provavelmente, amava-os. Só que me obstruíam o caminho, obscurecendo a minha visão do futuro. Com o passar do tempo consegui ver através deles, através dos meus pais transparentes."
Mas a memória de Max não é fiável, e ele sabe disso. Como as vagas do mar, ela avança e recua apenas a seu prazer, e ele vai vogando sem controlo por esse mar adentro, acabado extenuado, à margem, arrastado pela força da rebentação.
"Há momentos em que o passado possui uma força tão grande que temos a sensação de que nos pode aniquilar."
Como narrador desta história, Max é absolutamente impotente perante os desígnios do destino, perante os caprichos da mente. Como o leitor, é um joguete nas mãos dos deuses.
"...em que momento, dentre todos os momentos, é que a vida não muda por completo até à derradeira e mais crucial de todas as mudanças?"
Porque se apercebe disso, a narrativa avança em direção à forma primitiva da existência, à conclusão que define a vida - Max, ao contrário de Bonnard, está destinado a terminar, não possui o "anátema da perpetuação" dos artistas e sabe que, quando encerrar a sua narrativa, isso será um fim em si mesmo. Anna não permanecerá se ele não a conseguir montar, como uma peça, no imenso puzzle da sua vida. E então, nada mais restará.
"(...)o que eu antevia para o futuro era de facto uma imagem que não passava de um passado imaginado. Poder-se-á dizer que mais do que antecipar o futuro me sentia nostálgico desse mesmo futuro, pois o que ia acontecer na minha fantasia na realidade já tinha desaparecido. E, inesperadamente, isso impressiona-me por ser de certo modo significativo. O que eu procurava era realmente o futuro ou algo para além dele?"
O Mar é um livro triste, sentimental, poético, claro, polido na sua forma e dotado de um estilo cristalino. A aproximação ao pós-impressionismo obriga à amputação do enredo: o subjetivo prevalece propositadamente, mas essa opção funciona muito bem, demasiado bem para admitir que é acidental. A ligação entre a pintura e a literatura não é só óbvia, é completa: da rapidez, à vivacidade, à expressão dos sentimentos. No final deve prevalecer a sensação provocada pelo todo em detrimento da análise do elemento técnico - só por essa razão não me alongo e alongo mais... Não é preciso.
"Afinal não passamos de pequenos botes de tristeza a vogar num silêncio lânguido por entre as trevas outonais."