...
Show More
"Quando falta o bom-senso ao homem audaz e simultaneamente poderoso e hábil na palavra, ele torna-se um cidadão perigoso."
28
Com obras destas, fica difícil escolher um tragediógrafo de eleição. Os três grandes poetas gregos autores de tragédias (Ésquilo, Sófocles, Eurípides) competem belamente, não haja dúvida. Já quase desisto da insistência de que o primeiro deles é realmente o melhor... quase.
Agora a parte gira.
De três anos à boleia em Clássicas, o latim não resistiu lá muito bem, mas isto, curiosamente, ficou:
As Grandes Dionísias, celebravam-se no início da primavera e duravam vários dias durante os quais o público participava em sacrifícios, cerimónias cívicas (como homenagens fúnebres, militares etc.) e, claro, assistia à representação teatral.
Um dia estava reservado à comédia e três à tragédia (com a representação de 3 tragédias + 1 drama satírico).
E quem era este público?
Certamente homens (embora as mulheres, garantidamente, participassem nos primeiros dias do festival para as procissões e sacrifícios) e certamente aliados da Liga de Delos (uma das coligações entre cidades aliadas durante a guerra aos persas - a par da Liga do Peloponeso -, liderada por Atenas. Estas ligas representavam o expoente máximo da democracia grega - gorado pela guerra, claro, do Peloponeso.
De entre as representações que aí tomavam lugar, nas Dionísias, sabemos hoje, ironicamente, que muito poucas obedeciam à temática dionisíaca. Isto talvez se explique - entre várias outras razões de origem esotérica - pelo facto do dionisismo ser um culto flagrantemente feminino. Ora pois, a cultura helénica assentava fortemente na fórmula do patriarcado, logo, em valores misóginos.*
Em As Bacantes, Eurípides - frequente concorrente no festival - retoma a tragédia mítica e traz-nos um rei (Penteu) derrotado pela força do deus (Baco), e um traçado geral da forma como o homem soberano encara a postura, o papel e o "potencial" da mulher ateniense (diga-se desde já que, quando as mulheres são retratadas como Ménades - sacerdotisas bárbaras de Baco - a despedaçar homens e animais em êxtases orgiásticos, o suposto potencial não é propriamente simpático...).
À parte isso, não deixa de ser curiosa a escolha de Eurípides por várias outras razões, entre elas a forma como escolhe apresentar os deuses e os homens - neste caso, o deus e o homem:
Desde logo, porque, para um grego, existem três categorias de seres vivos:
Animais;
Humanos;
Mortais.
Estes últimos obedecem, por ordem, a estas qualidades:
Racional e mortal;
Racional e imortal.
Espantosamente, nem Penteu nem Baco parecem honrar o primeiro desses atributos. Falta a ambos, desde logo, aquilo a que um ateniense chamaria de aretê (virtude essencial para a formação de um herói, por exemplo) e que consistia no respeito pelos valores morais da civilização. Neste caso, e para Penteu, o respeito pelos deuses; para Baco, o respeito pelo inimigo.
Assim, e porque a ambos manca essa qualidade, o rei desrespeita o deus e o deus vinga-se no rei (e na família toda que isto é uma tragédia que se preza!)
Ficam os reis desde já avisados, e contra isto pouco há a dizer:
"Infinitas são as manifestações da vontade divina; infinitos os acontecimentos que os deuses desencadeiam contra o que tinhamos previsto. Os que esperamos, esses não se realizam, os que não esperamos, um deus lhes abre o caminho."
91
Esta peça fez Eurípides subir na minha consideração ao ponto de ficar envergonhada pelas vezes que já disse não gostar da sua Medeia.
É assim bom!
* sobre esta temática, e os desafios contemporâneos de interpretação e encenação, existem vários estudos muito interessantes, nomeadamente: "Rebel Women, Staging Ancient Greek Drama Today", editado por John Dillon and S. E.Wilmer
28
Com obras destas, fica difícil escolher um tragediógrafo de eleição. Os três grandes poetas gregos autores de tragédias (Ésquilo, Sófocles, Eurípides) competem belamente, não haja dúvida. Já quase desisto da insistência de que o primeiro deles é realmente o melhor... quase.
Agora a parte gira.
De três anos à boleia em Clássicas, o latim não resistiu lá muito bem, mas isto, curiosamente, ficou:
As Grandes Dionísias, celebravam-se no início da primavera e duravam vários dias durante os quais o público participava em sacrifícios, cerimónias cívicas (como homenagens fúnebres, militares etc.) e, claro, assistia à representação teatral.
Um dia estava reservado à comédia e três à tragédia (com a representação de 3 tragédias + 1 drama satírico).
E quem era este público?
Certamente homens (embora as mulheres, garantidamente, participassem nos primeiros dias do festival para as procissões e sacrifícios) e certamente aliados da Liga de Delos (uma das coligações entre cidades aliadas durante a guerra aos persas - a par da Liga do Peloponeso -, liderada por Atenas. Estas ligas representavam o expoente máximo da democracia grega - gorado pela guerra, claro, do Peloponeso.
De entre as representações que aí tomavam lugar, nas Dionísias, sabemos hoje, ironicamente, que muito poucas obedeciam à temática dionisíaca. Isto talvez se explique - entre várias outras razões de origem esotérica - pelo facto do dionisismo ser um culto flagrantemente feminino. Ora pois, a cultura helénica assentava fortemente na fórmula do patriarcado, logo, em valores misóginos.*
Em As Bacantes, Eurípides - frequente concorrente no festival - retoma a tragédia mítica e traz-nos um rei (Penteu) derrotado pela força do deus (Baco), e um traçado geral da forma como o homem soberano encara a postura, o papel e o "potencial" da mulher ateniense (diga-se desde já que, quando as mulheres são retratadas como Ménades - sacerdotisas bárbaras de Baco - a despedaçar homens e animais em êxtases orgiásticos, o suposto potencial não é propriamente simpático...).
À parte isso, não deixa de ser curiosa a escolha de Eurípides por várias outras razões, entre elas a forma como escolhe apresentar os deuses e os homens - neste caso, o deus e o homem:
Desde logo, porque, para um grego, existem três categorias de seres vivos:
Animais;
Humanos;
Mortais.
Estes últimos obedecem, por ordem, a estas qualidades:
Racional e mortal;
Racional e imortal.
Espantosamente, nem Penteu nem Baco parecem honrar o primeiro desses atributos. Falta a ambos, desde logo, aquilo a que um ateniense chamaria de aretê (virtude essencial para a formação de um herói, por exemplo) e que consistia no respeito pelos valores morais da civilização. Neste caso, e para Penteu, o respeito pelos deuses; para Baco, o respeito pelo inimigo.
Assim, e porque a ambos manca essa qualidade, o rei desrespeita o deus e o deus vinga-se no rei (e na família toda que isto é uma tragédia que se preza!)
Ficam os reis desde já avisados, e contra isto pouco há a dizer:
"Infinitas são as manifestações da vontade divina; infinitos os acontecimentos que os deuses desencadeiam contra o que tinhamos previsto. Os que esperamos, esses não se realizam, os que não esperamos, um deus lhes abre o caminho."
91
Esta peça fez Eurípides subir na minha consideração ao ponto de ficar envergonhada pelas vezes que já disse não gostar da sua Medeia.
É assim bom!
* sobre esta temática, e os desafios contemporâneos de interpretação e encenação, existem vários estudos muito interessantes, nomeadamente: "Rebel Women, Staging Ancient Greek Drama Today", editado por John Dillon and S. E.Wilmer