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O desenvolvimento do ser humano, sobretudo enquanto felizes petizes, baseia-se no percepcionado pelo meio envolvente, num processo de engrenagem que, iniciado pela visão, a transmuta e trabalha, para modelar peças de conduta. Um animal mecanizado, nesta era industrial, vive, pois, de associações e modelos, numa tentativa constante de aprimorar o produto final. Deste modo, os primeiros gestos são meras tentativas de reprodução daqueles apreendidos, as primeiras palavras as que mais repetidas vezes se escutam. Neste retorno à idade do embalo, torna-se claro que os progenitores sejam considerados como os primeiros heróis, esse título tão apregoado pelos cânones da literatura e massificado pelas histórias dos que, não se cingindo ao mero terreno, lhe adicionam um “super” inabalável.
Este modelo tem vindo a ser cinzelado por benfazejos artífices, desde os primórdios da história, bem exemplificado pelas epopeias trágicas de Homero. Na “Ilíada”, canta-se, numa laúde imensa, a refrega empreendida pelos Aqueus, contra Troianos, fruto das emoções que sempre comandam as, pouco reflectidas, reacções humanas – a paixão fogosa, a cobiça sedenta, o orgulho cego. No centro da batalha, deitando por terra qualquer véu branco que a recobrisse, jaz Helena que, com toda a sua formosura coisificada, é disputada por estes adversários, personificados nos dois protagonistas, Aquiles e Heitor. Heróis em título, encontram-se em pólos opostos, não apenas na batalha, mas também na sua essência – se o primeiro é semideus, por herança (filho de deusa e de mortal), mas se entrega aos vícios e às emoções humanas; já o segundo, sendo humano, é divinizado pelas suas atitudes, colocado no púlpito glorificado, pelos seus congéneres. Partilham as características fundamentais dos heróis – o sentimento de justiça, a valentia brava e o espírito de sacrifício – e isso os aproxima. A tal ponto que, ao bramirem umas nas outras, as armas criam um som que se mantém como eco, por todas as eras, chegando à actualidade.
A mestria de Homero é inabalável, por mais espadas que a tentem ferir, pois suas cnémides são densas como bronze. Com uma escrita minunciosa, digna de um argumento de cinema, ao invés de convidar o leitor a uma experiência meramente contemplativa, o autor suga-o, veste-o das melhores armaduras possíveis, adaptadas a cada um, e entrega-o ao combate. Vai, pois, digladiando-se frente às diferentes personagens citadas, numa tarefa quase hercúlea, mas facilitada pelos bons ares emanados por Homero – ele planta verdadeiras árvores genealógicas, nas suas descrições, criando florestas densas, passiveis de serem desbravadas. Repetições também as há que, podendo ser recriminadas, funcionam como um elo cíclico manufacturado pelo ourives Hefesto, pejado das melhores pedras luzentes. Para além disso, acaricia as nossas faces, sujas no embate, com belas comparações entre homens e os mais diversos elementos da Natureza, relativizando a vil raiva cantada – algo tão natural, como a busca de alimento. Na mesma medida, faz descer, dos altos céus, os deuses olímpicos que demonstram ser tão humanos, como os que pisam a terra sulcada a mortos.
Por mais férrea que seja a camada protectora, o medo permanece porque, nesta luta, os corpos se embrenham e o sangue conflui para uma nascente de um rio escarlate, numa mortandade palpável. A foz? Porventura a mente de quem lê estas palavras apetrechadas de asas que, entre a retaliação final, são decepadas de um qualquer corpo, para as colocar noutro – o nosso, alado literato, que se deixa levar no encantamento. O estatuto de herói é, assim, generalizado, tocando homens, mesmo aqueles que tenham defeitos – também eles inspiram combates terrenos. Vitória ou derrota são relativas. Deparamo-nos, sim, com um processo catártico que exige, a um amante da mitologia grega, enunciar estas palavras, para dar a um desafio portentoso, um funeral digno como ele merece.
"Quando dois se põem a caminho, um discerne antes do doutro
o que é mais proveitoso; ao passo que quando é só um
a discernir, curto é o pensamento e ténue a astúcia."
Este modelo tem vindo a ser cinzelado por benfazejos artífices, desde os primórdios da história, bem exemplificado pelas epopeias trágicas de Homero. Na “Ilíada”, canta-se, numa laúde imensa, a refrega empreendida pelos Aqueus, contra Troianos, fruto das emoções que sempre comandam as, pouco reflectidas, reacções humanas – a paixão fogosa, a cobiça sedenta, o orgulho cego. No centro da batalha, deitando por terra qualquer véu branco que a recobrisse, jaz Helena que, com toda a sua formosura coisificada, é disputada por estes adversários, personificados nos dois protagonistas, Aquiles e Heitor. Heróis em título, encontram-se em pólos opostos, não apenas na batalha, mas também na sua essência – se o primeiro é semideus, por herança (filho de deusa e de mortal), mas se entrega aos vícios e às emoções humanas; já o segundo, sendo humano, é divinizado pelas suas atitudes, colocado no púlpito glorificado, pelos seus congéneres. Partilham as características fundamentais dos heróis – o sentimento de justiça, a valentia brava e o espírito de sacrifício – e isso os aproxima. A tal ponto que, ao bramirem umas nas outras, as armas criam um som que se mantém como eco, por todas as eras, chegando à actualidade.
A mestria de Homero é inabalável, por mais espadas que a tentem ferir, pois suas cnémides são densas como bronze. Com uma escrita minunciosa, digna de um argumento de cinema, ao invés de convidar o leitor a uma experiência meramente contemplativa, o autor suga-o, veste-o das melhores armaduras possíveis, adaptadas a cada um, e entrega-o ao combate. Vai, pois, digladiando-se frente às diferentes personagens citadas, numa tarefa quase hercúlea, mas facilitada pelos bons ares emanados por Homero – ele planta verdadeiras árvores genealógicas, nas suas descrições, criando florestas densas, passiveis de serem desbravadas. Repetições também as há que, podendo ser recriminadas, funcionam como um elo cíclico manufacturado pelo ourives Hefesto, pejado das melhores pedras luzentes. Para além disso, acaricia as nossas faces, sujas no embate, com belas comparações entre homens e os mais diversos elementos da Natureza, relativizando a vil raiva cantada – algo tão natural, como a busca de alimento. Na mesma medida, faz descer, dos altos céus, os deuses olímpicos que demonstram ser tão humanos, como os que pisam a terra sulcada a mortos.
Por mais férrea que seja a camada protectora, o medo permanece porque, nesta luta, os corpos se embrenham e o sangue conflui para uma nascente de um rio escarlate, numa mortandade palpável. A foz? Porventura a mente de quem lê estas palavras apetrechadas de asas que, entre a retaliação final, são decepadas de um qualquer corpo, para as colocar noutro – o nosso, alado literato, que se deixa levar no encantamento. O estatuto de herói é, assim, generalizado, tocando homens, mesmo aqueles que tenham defeitos – também eles inspiram combates terrenos. Vitória ou derrota são relativas. Deparamo-nos, sim, com um processo catártico que exige, a um amante da mitologia grega, enunciar estas palavras, para dar a um desafio portentoso, um funeral digno como ele merece.
"Quando dois se põem a caminho, um discerne antes do doutro
o que é mais proveitoso; ao passo que quando é só um
a discernir, curto é o pensamento e ténue a astúcia."