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Por mais encantadora que ele a achasse, a rapariga impressionava-o mais pelo seu ar de desafio, que constituía, na realidade, um dos seus atractivos. (...)
- Não tenho medo, bem sabe – declarou então Isabel, de uma forma, na verdade, um tanto impertinente.
- Não receia o sofrimento?
- Sim, do sofrimento tenho medo, mas não dos fantasmas. Acho que nos deixamos invadir facilmente pela dor. (...) Não é necessário sofrer; não somos feitos para tal. (...) O pior é que, se não sofremos passamos por insensíveis.
Nem se fosse mulher Henry James conseguiria criar heroínas com mais personalidade, e é esse o maior elogio que hoje posso fazer-lhe. Quer seja pespeneta como Daisy, serena como Catherine, decidida como Gertrude, esplêndida como Isabel, o que sinto sempre com cada protagonista deste autor é que, se ela fosse de carne e osso e eu pudesse recuar até ao século XIX, gostaria de ser amiga dela. Foi por me ter afeiçoado tanto a Isabel Archer que, a determinada altura, fechei o livro zangada com HJ e o pus de lado durante uns tempos. Poderia culpar os quase dois quilos de páginas ou as 26 horas de audiobook para explicar os sete meses que levei a ler esta obra-prima, mas foi só a pura indignação que tive de deixar dissipar que me impediu de avançar a bom ritmo num livro que até aí fluía com diálogos espirituosos e personagens fascinantes.
Disse a Sra. Touchett: - Eu, por exemplo, gosto de ser tratada de uma forma pessoal. Miss Stackpole prefere que a considerem membro de um grupo.
- Não compreendo o que quer dizer – ripostou esta - O que prefiro é ser tratada como senhora... e senhora americana!
- Pobres senhoras americanas! – exclamou a dona da casa. – São escravas de escravos.
- Companheiras de homens livres – emendou a jornalista.
- Companheiras dos seus servidores: da criada irlandesa, do criado negro. Ajudam-nos ao trabalho.
(...)
- Companheiras de homens livres... Apreciei a sua frase, Miss Stackpole – interveio Ralph - É uma definição admirável.
- Quando falo de homens livres não me refiro a si, Sr. Touchett.
Os escritores banais criam triângulos amorosos. Os mestres criam pentágonos, e não deixam nenhuma das arestas mais fraca que as outras. Isabel Archer, não sendo particularmente bonita, tem quatro pretendentes e o mais espantoso é que eles estão sempre a entrar e a sair de cena ao longo de toda a obra. Temos Caspar Goodwood, que veio dos Estados Unidos atrás de Isabel, Lord Warburton que se apaixona por ela logo no início da sua estadia em Inglaterra, Ralph Touchett, o primo inteligente e generoso, e um quarto homem odioso que não será aqui nomeado. O casamento, porém, não está nos seus planos imediatos.
- Se casasse consigo, fugiria à minha sorte.
- Não entendo. Por que razão o seu destino se deve desenrolar longe do meu?
- Porque é assim – respondeu ela, como só as mulheres respondem – Sei que é assim. Está escrito que não deve renunciar a ele. Sinto que não posso.
O infeliz Lord Warburton ficou perplexo, com uma expressão de dúvida.- Então casando comigo, renunciaria...?
- Não no sentido usual da frase. Ganhava até... ganhava muito. Mas desistia de outras possibilidades. (...) É-me impossível impedir a infelicidade. Casando consigo, tentaria fugir a ela...
Vi o filme homónimo de Jane Campion quando estreou nos cinemas, mas não me lembro rigorosamente de nada a não ser do grande erro de casting que foi no geral. Nicole Kidman, com a sua eterna cara nº 17 na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, não faz justiça a Isabel Archer, e John Malkovich, para mim, há-de ser sempre Valmont das “Relações Perigosas”, e no fundo é esse papel maquiavélico que lhe coube aqui, com direito até a uma espécie de Madame de Meurteill, com quem conspira contra Isabel.
Se de boas intenções está o inferno cheio, “Retrato de uma Senhora” é um exemplo disso. Trazida dos Estados Unidos para a Europa pela tia, depois de ter ficado órfã, Isabel a todos encanta, mas é o seu primo Ralph Touchett, a minha personagem masculina preferida, que mais se deslumbra com o seu carácter, com a sua curiosidade em relação ao mundo e com a resposta sempre na ponta da língua. Num gesto altruísta, para lhe proporcionar a total independência e a possibilidade de realizar os seus sonhos, Ralph consegue que a prima receba uma avultada herança.
- Absorvi-me demasiado em mim mesma; encaro a vida como se ela fosse uma receita médica. Porque havemos de estar sempre a magicar se as coisas são boas para nós, tal se fôssemos doentes deitados numa enfermaria? (...) É porque tenho medo. – deteve-se. A voz tremia-lhe um pouco. – Sim, tenho medo. Não lhe sei explicar. A riqueza implica liberdade, e a liberdade assusta-me. É uma coisa admirável! Deve-se saber empregá-la senão, cobrimo-nos de vergonha. Além disso, é preciso que nunca deixemos de pensar. Obriga a um esforço contínuo. Quem sabe se ser-se pobre não será maior felicidade?
É esta tentativa de brincar aos deuses que acciona toda a trama e empurra Isabel para situações fora do seu controlo, levando-a numa viagem puramente emocional.
Sim, ele quisera dizer isso: gostaria que a mulher não possuísse nada no cérebro e se limitasse à sua bela aparência exterior. Ela própria sabia que possuía excesso de ideias – e até talvez tivesse mais do que ele supunha, muitas mais do que exprimira quando fora pedida em casamento. De facto, mostrara-se hipócrita, mas só porque o amava tanto, tanto! Tinha muitas ideia para si somente: todavia se casasse, poderia partilhá-la com mais alguém. Não era fácil arrancá-las pela raiz, embora, com certeza, fosse possível reprimi-las, tendo o cuidado de nunca as manifestar.
- Não tenho medo, bem sabe – declarou então Isabel, de uma forma, na verdade, um tanto impertinente.
- Não receia o sofrimento?
- Sim, do sofrimento tenho medo, mas não dos fantasmas. Acho que nos deixamos invadir facilmente pela dor. (...) Não é necessário sofrer; não somos feitos para tal. (...) O pior é que, se não sofremos passamos por insensíveis.
Nem se fosse mulher Henry James conseguiria criar heroínas com mais personalidade, e é esse o maior elogio que hoje posso fazer-lhe. Quer seja pespeneta como Daisy, serena como Catherine, decidida como Gertrude, esplêndida como Isabel, o que sinto sempre com cada protagonista deste autor é que, se ela fosse de carne e osso e eu pudesse recuar até ao século XIX, gostaria de ser amiga dela. Foi por me ter afeiçoado tanto a Isabel Archer que, a determinada altura, fechei o livro zangada com HJ e o pus de lado durante uns tempos. Poderia culpar os quase dois quilos de páginas ou as 26 horas de audiobook para explicar os sete meses que levei a ler esta obra-prima, mas foi só a pura indignação que tive de deixar dissipar que me impediu de avançar a bom ritmo num livro que até aí fluía com diálogos espirituosos e personagens fascinantes.
Disse a Sra. Touchett: - Eu, por exemplo, gosto de ser tratada de uma forma pessoal. Miss Stackpole prefere que a considerem membro de um grupo.
- Não compreendo o que quer dizer – ripostou esta - O que prefiro é ser tratada como senhora... e senhora americana!
- Pobres senhoras americanas! – exclamou a dona da casa. – São escravas de escravos.
- Companheiras de homens livres – emendou a jornalista.
- Companheiras dos seus servidores: da criada irlandesa, do criado negro. Ajudam-nos ao trabalho.
(...)
- Companheiras de homens livres... Apreciei a sua frase, Miss Stackpole – interveio Ralph - É uma definição admirável.
- Quando falo de homens livres não me refiro a si, Sr. Touchett.
Os escritores banais criam triângulos amorosos. Os mestres criam pentágonos, e não deixam nenhuma das arestas mais fraca que as outras. Isabel Archer, não sendo particularmente bonita, tem quatro pretendentes e o mais espantoso é que eles estão sempre a entrar e a sair de cena ao longo de toda a obra. Temos Caspar Goodwood, que veio dos Estados Unidos atrás de Isabel, Lord Warburton que se apaixona por ela logo no início da sua estadia em Inglaterra, Ralph Touchett, o primo inteligente e generoso, e um quarto homem odioso que não será aqui nomeado. O casamento, porém, não está nos seus planos imediatos.
- Se casasse consigo, fugiria à minha sorte.
- Não entendo. Por que razão o seu destino se deve desenrolar longe do meu?
- Porque é assim – respondeu ela, como só as mulheres respondem – Sei que é assim. Está escrito que não deve renunciar a ele. Sinto que não posso.
O infeliz Lord Warburton ficou perplexo, com uma expressão de dúvida.- Então casando comigo, renunciaria...?
- Não no sentido usual da frase. Ganhava até... ganhava muito. Mas desistia de outras possibilidades. (...) É-me impossível impedir a infelicidade. Casando consigo, tentaria fugir a ela...
Vi o filme homónimo de Jane Campion quando estreou nos cinemas, mas não me lembro rigorosamente de nada a não ser do grande erro de casting que foi no geral. Nicole Kidman, com a sua eterna cara nº 17 na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, não faz justiça a Isabel Archer, e John Malkovich, para mim, há-de ser sempre Valmont das “Relações Perigosas”, e no fundo é esse papel maquiavélico que lhe coube aqui, com direito até a uma espécie de Madame de Meurteill, com quem conspira contra Isabel.
Se de boas intenções está o inferno cheio, “Retrato de uma Senhora” é um exemplo disso. Trazida dos Estados Unidos para a Europa pela tia, depois de ter ficado órfã, Isabel a todos encanta, mas é o seu primo Ralph Touchett, a minha personagem masculina preferida, que mais se deslumbra com o seu carácter, com a sua curiosidade em relação ao mundo e com a resposta sempre na ponta da língua. Num gesto altruísta, para lhe proporcionar a total independência e a possibilidade de realizar os seus sonhos, Ralph consegue que a prima receba uma avultada herança.
- Absorvi-me demasiado em mim mesma; encaro a vida como se ela fosse uma receita médica. Porque havemos de estar sempre a magicar se as coisas são boas para nós, tal se fôssemos doentes deitados numa enfermaria? (...) É porque tenho medo. – deteve-se. A voz tremia-lhe um pouco. – Sim, tenho medo. Não lhe sei explicar. A riqueza implica liberdade, e a liberdade assusta-me. É uma coisa admirável! Deve-se saber empregá-la senão, cobrimo-nos de vergonha. Além disso, é preciso que nunca deixemos de pensar. Obriga a um esforço contínuo. Quem sabe se ser-se pobre não será maior felicidade?
É esta tentativa de brincar aos deuses que acciona toda a trama e empurra Isabel para situações fora do seu controlo, levando-a numa viagem puramente emocional.
Sim, ele quisera dizer isso: gostaria que a mulher não possuísse nada no cérebro e se limitasse à sua bela aparência exterior. Ela própria sabia que possuía excesso de ideias – e até talvez tivesse mais do que ele supunha, muitas mais do que exprimira quando fora pedida em casamento. De facto, mostrara-se hipócrita, mas só porque o amava tanto, tanto! Tinha muitas ideia para si somente: todavia se casasse, poderia partilhá-la com mais alguém. Não era fácil arrancá-las pela raiz, embora, com certeza, fosse possível reprimi-las, tendo o cuidado de nunca as manifestar.